quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Cantiga do Menino Branco

Os teus olhinhos pensativos,
menino branco (eras translúcido
quando em meu sonho entraste) e tímido,
passeiam sobre os móveis rústicos

que nosso lar doce mobíliam.
Não vêem, porém, palmo adiante,
como num transe, e se se aninham
no pó de sombra sobre a estante

onde dormitam nossos livros,
logo alçam vôo – vão tão distantes
os teus olhinhos pensativos,
ó meu menino muito branco,

que só repousam (sem destino
definitivo que os estanque)
lá onde o tempo ainda engatinha
e dorme o sono das crianças.

sábado, 4 de outubro de 2014

Permanência

Contemplo com emoção a vida amena,
a soma desses dias que vivemos
sem perceber que passam, que passamos.
E entanto do que finda há algo que emana

e se acumula a um canto, como pó,
ou antes como a pedra preciosa
gestada nas entranhas do rochedo
à custa da erosão de alguns milênios.

De tudo o que vivemos, dessas horas
de doce dormitar diante do espelho
sem ver que envelhecemos, sobrevive

claro no sobretempo o amor que jorra
desde a ancestral nascente que semeias
em meu corpo de terra, redivivo.




Se a mim me der a vida te ver velho,
tua loura cabeleira embranquecida
e ao fundo de olhos calmos, de partida,
a certeza de quem se sabe eterno,

se a ventura eu tiver de estar contigo
ao fim da estrada longa e pedregosa,
sabendo que tuas mãos breves recitam
em cada linha a vida que era nossa,

não temerei que o chão se abra e eu não sinta
mais a trepidação das horas duras;
que o tempo se desfaça em bolhas, plumas,

contanto que este alento se consinta:
sorver tua presença transformada
em pura essência, quando o mais for nada.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

De Outro Maio Fatal

"Era em maio, foi em maio,
sem calhandra ou rouxinol,
quando se acaba nos campos
da roxa quaresma a cor,
e às negras montanhas frias
vagaroso sobe o sol,
embuçado em névoa fina,
sem vestígio de arrebol. (...)"


- Cecília Meireles, in: Romanceiro da Inconfidência.